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sábado, março 28, 2009

A música, como arte, atualiza sempre o passado

Na Veja desta semana me chamou a atenção a bem escrita e perfeita, resenha do livro O resto, é ruído. Um inventário crítico a respeito da música do século XX, que transcrevo na íntegra após esta crônica. Trata-se, portanto de um post longo que suponho sucite interesse apenas de quem gosta de música ou seja como eu um curioso incorrigível.

Gosto muito de música e exerci quase a profissão de músico quando garotão. Ainda possuo a minha guitarra Giannini, ano 1964, tenho um bom violão clássico Di Giorgio estilo Tárrega e um piano Fritz Dobert.


Praticamente abandonei por quase três décadas a prática musical e durante esse tempo dedilhei, muito esporadicamente, o violão e o piano.

Recentemente decidi voltar a ensaiar guitarra e violão e inclusive estou pegando umas aulas com o exímio jazzista aqui da Ilha, o guitarrista e professor de música Cássio Moura, que possui o seu estúdio e gravadora na Lagoa da Conceição.


Uma manutenção na guitarra deixou-a inteirinha, tudo original. Apenas a troca de trastes e um potenciômetro se fez necessário. Comprei um novo cabo e mini cubo (pequeno amplificador) e já estou no batente. E todos querem ver de perto a guitarra pela raridade e mais ainda porque funciona pefeitamente.

Além disso, ouço música todos os dias e a internet foi uma bênção para mim, que posso ouvir, baixar, obter letras cifradas, etc...num clique. Isto é algo notável e jamais imaginado no passado.

E às vezes, duas palavras sobre música com um expert abrem para a gente outro horizonte.


Foi o caso do meu contato com o Maestro mineiro Sérgio Canedo, do qual recebi uma cópia de um raro CD de Gyorgy Ligeti, o famoso compositor húngaro que teve uma de suas músicas utilizadas como trilha para filme 2001: Uma odisséia no espaço, que assisti em São Paulo logo na sua estréia no Brasil, lá por volta de 1970! Arre! Era apenas um garotão e simplesmente ignorava Ligeti, como ignorava a atonalidade. Estava nessa época ouvindo muito rock dos Beatles, bossa nova e jazz, gêneros dos quais continuo gostando, principalmente do jazz e da bossa nova.

Canedo, muito educado, com aquela sua calma mineira, disse apenas - ainda me lembro - que aquele CD era para ser ouvido com calma e atenção, em várias oportunidades.


Depois fui para a internet e descobri vários vídeos com execuções das músicas de Ligeti, inclusive pesquisei mais, li um resumo de sua biografia que me fez chegar até os fractais de Mandelbrot, já que Ligeti havia se interessado pela obra de Mandelbrot. Em certo sentido acho que entendi por que Ligeti se amarrou nos fractais.

Como o dia tem apenas 24 horas, sendo que dessas a gente tem que reservar umas 7 ou 8 para dormir, nem uma severa racionalização das cerca de 16 horas restantes são suficientes para o trabalho e a pesquisa das coisas que me interessam.


Pelo menos no meu caso, já que me interesso por diversas coisas ao mesmo tempo, que vão da música à sociologia, filosofia, arte, política, direito, ciência, tecnologia e me vejo o tempo todo imerso num torvelinho sem fim de curiosidade insaciável sem limite.

Mas a minha grande paixão é e sempre foi a música e não me contento em apenas ouvi-la, tenho executá-la, vencer o desafio de encontrar uma harmonia bonita, redondinha, cheia de acordes dissonantes, arriscar um improviso. Quando pego o instrumento não dá vontade de largar, embora esteja fora de forma e retornando aos poucos.

Isto é bom e, ao mesmo tempo, é ruim. Tanto é que iria escrever uma nova introdutória para a resenha de Veja, e acabei escrevendo uma crônica a respeito de mim mesmo (ou é eu mesmo?) corrijam-me, por favor. Mas de alguma forma vou revelando aos leitores o que eu faço, penso e gosto.


Isto é possível por causa de internet que nos aproxima e o blog é um espaço intimista, muito coloquial, algo que só quem assimilou essa tecnologia é capaz de experimentar.

Não sei se sou capaz, outra vez, de praticar o antigo jornalismo que se faz hoje ainda através das mídias convencionais.

Voltando à questão do livro resenhado em Veja, que versa sobre a música erudita e seu desdobramento no século XX com as fantásticas experiências dodecafônicas, esclareço que não sou iniciado nessa área, mas aprecio, como aprecio também a música minimalista, enfim todos esses experimentos e criações da aventura humana.


O diabo é que o dia tem apenas 24 horas, quando deveria ter pelo menos umas 90, como diz o meu amigo e parceiro musical de juventude, o Zenóbio Tomio.

Para dar uma idéia aos interessados em música, estou postando dois vídeos. São duas músicas de Ligeti: uma é Artikulation, que a resenha de Veja fala e apresenta uma foto do trabalho gráfico em cima da música. O outro vídeo é a fabulosa execução ao piano da estranha e instigante música criada por Ligeti, que se chama “Escada do Diabo”, que exige do instrumentista o domínio de uma escala muito louca. Vale a pena ver esses vídeos.

Blog também é cultura...hehehe...e assim a gente vai aprendendo e descobrindo as coisas que estão aí a comprovar a nossa monumental ignorância.


A música tem o poder de atualizar o passado, levando-se em consideração o conceito que criei para a arte, assim formulado: a arte é um coágulo de emoção. Desta forma a obra de arte é intertemporal, por isso, sempre atual, se for arte e não apenas um jeito tosco de arranjar as sete notas, no caso da arte musical.

A seguir a resenha de Veja:

Música
100 anos de dissonância

O Resto É Ruído, do jornalista americano Alex Ross,
traça a grande aventura da música erudita no século XX

Sérgio Martins


Fotos divulgação
MÚSICA PARA OS OLHOS
Uma das páginas da partitura visual que, em 1970, o musicólogo alemão Rainer Wehinger produziu para a obra Artikulation (1958), de György Ligeti
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Trechos do livro e das músicas

De todas as grandes manifestações artísticas do século XX, a música erudita se provou a mais difícil e hostil ao homem comum.

Ao abandonarem as regras da harmonia e abraçarem a dissonância e o ruído, seus praticantes mais extremos não afrontaram apenas convenções culturais vigentes havia séculos, mas também a própria biologia: o ouvido humano é um órgão programado para interpretar como agressão e aspereza tudo o que fuja a uma certa zona de conforto.

Por isso, mais ainda do que apreciar poemas ou pinturas vanguardistas, ouvir a música de Arnold Schoenberg, Pierre Boulez ou John Adams, para citar compositores nascidos em diferentes décadas e países, é um hábito que só se adquire com algum esforço. O Resto É Ruído (Companhia das Letras; tradução de Claudio Carina e Ivan Weisz Kuck; 646 páginas; 64 reais), do jornalista americano Alex Ross, certamente não converterá as massas à música dodecafônica ou minimalista.

Mas, ao desvendar os segredos técnicos das grandes composições e retratar dezenas de artistas contra um pano de fundo de guerras, ditaduras e agitação social, este belo livro tem um mérito indiscutível: transforma a história da música no século XX numa grande aventura.

O Resto É Ruído começa em 1906, com a apresentação da ópera Salomé, do compositor alemão Richard Strauss, na cidade austríaca de Graz. Termina com uma visita ao americano John Adams em 2000, enquanto ele trabalha na composição do oratório El Niño. Na visão de Ross, são dois momentos emblemáticos.

Strauss, que começou a carreira como autor romântico, decretou o fim desse movimento ao apresentar aquela obra surpreendente, marcada pela cacofonia. Gustav Mahler e Arnold Schoenberg assistiram à récita de Graz. Para Ross, a presença deles é também ela uma tradução simbólica da guinada precipitada por Salomé.

Mahler, assim como Strauss, era representante do romantismo e das sinfonias formais – o passado que ali se encerrava, enfim. Schoenberg, por seu turno, viria a ser o novo – o atonalismo, para o qual o empurraram tanto a ópera de Strauss como a morte de seu professor Mahler, em 1911.

No outro extremo, situado mais de nove décadas após aquele instante catalisador, está o americano Adams, o maior compositor de sua geração, por ser uma espécie de síntese viva dessa longa trajetória: o artista que combinou o formato sinfônico com a música minimalista.

OUVIDOS ATENTOS
Alex Ross: explicações precisas, mas sem abuso de termos técnicos

Se existe um aspecto em O Resto É Ruído que pode ser definido como brilhante é a forma pela qual Ross mostra como a arte tantas vezes serviu a propósitos políticos. Richard Strauss, que aderiu ao nazismo porque Adolf Hitler supostamente era admirador de suas obras, virou um joguete. Ao final da guerra, alegou que sua adesão ao Partido Nazista fora um estratagema para proteger sua nora judia.

Os russos Sergei Prokofiev e Dmitri Shostakovich viveram momentos de terror sob o jugo do ditador soviético Josef Stalin, que detestava o atonalismo por ser uma suposta expressão da "decadente" arte ocidental. As composições de Prokofiev eram criticadas pelo Partido Comunista, e Shostakovich irritou o ditador com a ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk.

Para escapar do exílio ou mesmo da execução, teve de se retratar criando exaltações ao regime soviético – as "sinfonias da guerra", da Quarta à Nona. Curiosa também é a cooptação da obra do americano Aaron Copland pelo governo do presidente Franklin Delano Roosevelt: durante a depressão econômica que abalou os Estados Unidos nos anos 30, o esquerdista e crítico severo do estilo de vida americano Copland se tornou o símbolo dos valores nacionais em razão de obras alvissareiras como Appalachian Spring.

Os trabalhos desses autores e sua adesão – ainda que forçada – a regimes e governos diversos ajudaram, no pós-guerra, a manter vivo o espírito da vanguarda. Numa inversão curiosa, foi a música convencional que se tornou moralmente duvidosa.

Theodor Adorno, uma das autoridades intelectuais do século XX, pregava que uma composição que preservasse a tonalidade traía uma mente fascista. Os artistas da geração que despontou nos anos 50 e 60, entre os quais se destacam John Cage, Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen, fariam o que Ross definiu como "arte da destruição".

São obras iconoclastas – há desde um quarteto para helicópteros até uma peça em que o pianista não toca nada e espera pela reação da plateia –, mas também, com frequência, de concepção um tanto árida, que exige muito boa vontade por parte do ouvinte.

Outro acerto de Ross é demonstrar a influência, muitas vezes insuspeita, da música erudita contemporânea sobre a composição popular do século XX. O mesmo atonalismo que afugentou a plateia das salas de concerto encontrou guarida no cinema. Stanley Kubrick fez uso das composições do húngaro György Ligeti em 2001 – Uma Odisseia no Espaço e De Olhos Bem Fechados, enquanto os acordes sinistros do polonês Krzysztof Penderecki assinalam os momentos mais aterrorizantes de O Exorcista.

O jazz se apoiou tanto nas melodias formais quanto nas dissonâncias da música contemporânea. A abertura de A Love Supreme, obra-prima do saxofonista John Coltrane, foi influenciada pelas sinfonias do finlandês Jean Sibelius.

O rock bebeu da fonte da vanguarda e do minimalismo. Ross conta que Ligeti ficou surpreso ao escutar uma nova composição de Stockhausen – na verdade, estava ouvindo A Day in the Life, dos Beatles, que utilizaram a técnica de colagens do autor alemão. A cantora Björk e o quinteto inglês Radiohead abraçaram as experimentações de Stockhausen, de Arvo Pärt e de Penderecki.

Em O Resto É Ruído, Ross reconstitui cenas fundamentais da música do século XX com tanta riqueza de detalhes que se tem a impressão de estar presente no momento em que elas aconteceram. Ler sobre a estreia de Salomé ou a Conferência Científica e Cultural para a Paz no Mundo, que ocorreu nos Estados Unidos em 1949 (na qual uma multidão cercou o compositor Shostakovich e exigiu sua deserção), não é apenas saber o que aconteceu naqueles locais. É também perceber a excitação que marcou tais momentos.

E, quando descreve uma obra musical, Ross evita abusar de termos técnicos. Mostra o detalhe e a função de cada instrumento, e passa ao leitor a impressão de estar ouvindo a obra in loco.

O Resto É Ruído é básico para quem deseja entender o que instigou os artistas do século passado a criar composições tão estranhas para o ouvido humano – e mais ainda para compreender como a música, qualquer que seja ela, é algo vivo, que responde não só às aspirações de seus autores, mas ao tempo e ao lugar em que eles existem

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