quarta-feira, fevereiro 17, 2010
Sponholz: a bruxa
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Postado por
Aluizio Amorim
às
2/17/2010 09:35:00 PM
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4 comentários:
DEU NO BLOG DO JANER
Lá!
Florianópolis - Lá! Lá onde nos bares não há cerveja e quando cerveja há, sempre está morna; onde todos falam baixinho, temendo que ao lado o vizinho pertença à polícia; onde em um restaurante se espera duas horas na fila para se comer um frango com fritas, isso quando não falta nem frango nem fritas; onde o garçom lhe joga o prato na cara julgando estar prestando um favor; onde os restaurantes de luxo, se de luxo se pode falar, são proibidos ao cidadão comum e somente acessíveis ai turista com dólares; onde só o dólar compra, nas berioskas, o que de melhor o Ocidente oferece; onde a moeda local compra menos que um cruzado-louvado-seja-Machado; e mesmo se algo comprasse, pouco ou nada há a comprar. Lá!
Lá onde telefones são grampeados e uma ligação interurbana exige três ou quatro horas de espera; onde pesquisadores estrangeiros têm microfones ocultos em seus quartos; onde as máquinas de xerox são proibidas ao cidadão e as de escrever devem ser registradas na polícia; onde para se fazer um xerox se necessita a assinatura de dez burocratas; onde livros estrangeiros são proibidos de entrar e os nacionais são proibidos de sair; onde nas bancas de jornais não há nem sombra de imprensa ocidental; onde há um diário oficial que atende pelo pomposo nome de Verdade e só publica mentiras; onde jornalista fez do medo uma segunda natureza e só se permite contestar o Estado quando o Estado admite ser contestado; onde criticar o poder pode render alguns anos de Sibéria. Lá!
Lá, de onde é proibido sair e de onde quem sai não volta mais, ou só volta para não expor a represálias os filhos mantidos como reféns; onde para viajar de uma cidade a outra é preciso passaporte; onde trocar de cidade não está ao alcance de qualquer cidadão; onde, na capital "onde faltam menos coisas", cada moscovita dispõe de cinco metros quadrados para habitar; onde os jovens casam, não por casar, mas postular o direito de, após cinco ou dez anos, obter dez metros quadrados fora da casa paterna; onde um grupo de atletas só vai ao Exterior cercado por anjos da guarda; onde uma orquestra, em excursão pelo Ocidente, ao voltar vira quarteto; onde entrar em hotéis internacionais é proibido ao cidadão comum; onde falar com um turista é gesto altamente suspeito e passível de imediata interrogação policial. Lá!
continua...
continua...
Lá, onde as caixas de correspondência não têm aberturas, para que nenhuma mensagem passe de uma pessoa a outra a não ser por intermédio do carteiro; onde todo porteiro tem por função vigiar quem visita quem em um edifício; onde quem quer que detenha uma parcelinha de poder esmaga quem tem menos ou não tem nenhuma; onde é proibido a quem quer que entre no país portar uma carta fechada; onde, para um turista, é impossível escolher um hotel que lhe agrade; onde, para o visitante, são impostas previamente datas e itinerários, e ai de quem deles fugir; onde o horário de partida de um trem é objeto de apostas e o de chegada é segredo do maquinista; lá, onde casais alugam táxis para fazer amor enquanto o táxi roda, já que outros lugares não há. Lá!
Lá naquelas plagas que Graciliano Ramos e Jorge Amado tanto amaram; naquela Nova Jerusalém para onde rumaram milhares de intelectuais deste século; naquelas estepes onde milhões de kulaks foram exterminados pelo Paizinho dos Povos; naqueles gulags onde foram explorados, torturados e massacrados os milhões de soviéticos que ousaram opor-se ao Paizinho, ao qual Amado dedicou um terno e amoroso livro, idilicamente intitulado O Mundo da Paz; naqueles países onde sindicatos e partidos políticos são proibidos e dissidentes são calados; naquela cultura onde liberdade é palavra já sem sentido, exceto quando sinônima de dizer sim. Lá!
Lá naquelas terras que tantos escritores e artistas tanto louvaram, mas nelas jamais ficaram; naquele paraíso em prosa e verso cantado, cercado por cães, metralhadoras e arame farpado, não para que nele ninguém entre, mas para que dele ninguém saia e não volte; naquele mundo da paz que em nome da paz invade seus vizinhos; naquele universo fechado onde o lucro é pecado e a economia um poço de águas paradas; naquele outro lado do Muro, onde cidadãos, buscando a liberdade, enfrentam guardas, cães, metralhadoras, arames farpados e campos minados. Lá!
continua...
continua...
Lá!
Lá naquelas praias onde veleiros só existem em maquete e manual de navegação à vela é livro subversivo; onde guardas de metralhadoras com baionetas caladas zelam para que os autóctones não falem com estrangeiros e onde navios ao largo despertam os nativos com alegres canhoneios, para insinuar que se vive em guerra permanente; naquelas ilhas piscosas, onde pescar é proibido, pois quem tem barco vai a Miami; onde lagosta é exportada ao satânico mundo capitalista, enquanto os ilhéus comem macarrão com ketchup, isto quando têm a ventura de encontrar os dois; onde um ditador de barbas brancas, há trinta anos no poder, proíbe qualquer plebiscito, eleição ou livre manifestação do pensamento e, apesar de tudo, continua sendo caitituado pelas esquerdas da América latina; naquela ilha tanto amada por Chico Buarque e Caetano Veloso, mas na qual nenhum dois gostaria de morar. Lá!
Lá onde Shakespeare, Nietzsche, Kafka, Orwell, Koestler, Sartre, Camus, Ernesto Sábato, Vargas Llosa, entre outros, estão proibidos; onde só existe uma editora que só edita o que o Estado quer; onde computador deve ser escondido debaixo da cama, e impressora , nem sonhar; onde tratamentos dentários são feitos sem anestesia e papel higiênico é privilégio da Nomenklatura; onde você não pode escolher um modelo de óculos ou número de sapatos; onde os absorventes higiênicos são tamanho único e vire-se como puder. Lá!
Lá, onde o álcool é proibido e sem nele afogar-se é difícil viver; onde o açúcar vale ouro pois dele pode-se fazer álcool; onde as colheitas apodrecem nos campos, pois a ninguém apetece colher qualquer coisa sem obter qualquer lucro; onde as prateleiras dos mercados são monótonas sucessões de coisas iguais; onde a prostituição oficialmente não existe, mas com uma calcinha de renda ou um par de meias de náilon você compra universitárias soberbas nos corredores dos hotéis internacionais; onde um prosaico par de jeans é símbolo de paraíso inacessível; onde as garrafas vazias de uísque são sinais de status e objeto de culto. Lá!
continua...
continua...
Lá, onde o cotidiano é tão duro que sequer sobra tempo a alguém para pensar em contestar o regime; onde falar sem peias é sempre um risco e pensar é sempre perigoso; onde o livre debate, a oposição de idéias e maneiras de ver o mundo é sequer concebível; onde o comer, longe de ser um prazer, constitui triste obrigação de ingerir coisas sem gosto para manter o esqueleto em pé; onde uma cervejinha gelada com lingüiça e farofa, viável em qualquer botequim de favela, é delírio só pensável nas ficções de um escritor de imaginação poderosa. Lá!
Lá, onde o século XIX ainda não chegou. Lá, onde viver só difere de estar morto porque os mortos, estes pelo menos não sofrem. Lá onde viajar é proibido e prospectos de agências de turismo são como contos de fadas. Lá, onde impera o medo e o futuro não existe. Lá, onde sonhar é crime. Nós queremos LULA LÁ!
Aqui, não.
* Tropecei hoje com esta crônica de meus dias de Florianópolis, escrita há 21 anos, e senti saudades dela. Foi publicada em A Notícia, Joinville, antes da queda do Muro, em 30.04.89.
- Enviado por Janer @ 9:22 AM
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